29.9.06

Bucéfalo

- "Castro. Assim, se nasce um Midas em meu reino, boto ele pra eunuco.".
- Midas?
- É.
- Não é esse o nome.
- Não?
- Não, Midas é o rei dono do boi. Touro, aliás.
- Ahm... E qual o nome do touro?
- Não lembro, lembro que é branco.

23.9.06

Fim de Semana pago pelo Caldeirão

Os dois pretendentes da coroa bem gostosinha eram representantes de duas etnias raciais e culturais bastante distintas.
À direita do telespectador e à esquerda da coroa estava o jovem e atlético moreno escuro, de calça jeans, sapato de pagodeiro, e gel no cabelo escuro e emaranhado.
No lado esquerdo da tela, encostado à direita da coroa, estava o homem branco, velho, gordo, de cabelo branco e aspecto de funcionário público lento e preguiçoso.

Para passar consigo um Final de Semana pago pelo Caldeirão na serra sei-lá-daonde, ela, uma espécie de Emília Fernandes carioca, escolheu o moreno magro.
Todos perceberam que o gordo não estava apaixonado de verdade por ela e que estava concorrendo pensando unicamente no PASSEIO e no LANCHE.

Eleito o escolhido, todos pediam beijos e o apresentador até fazia biquinhos e mandava beijinhos para a câmera de um jeito bastante estranho. Ela não quis beijar. Nas arquibancadas faziam polichinelos e clamavam gritando por "Se-li-nho! Se-li-nho! Se-li-nho!". O apresentador pediu a ela que beijasse mas ela continuou negando.

Não beijou.

Óbvio que escolheu esse cara por falta de opção.

Não beijou.

E ganhou um Fim de Semana pago pelo Caldeirão.

Falcão, o Campeão

Com o braço quase batendo na mesa, às portas da derrota, Falcão Balboa Stallone inicia um movimento como o do ponteiro do relógio voltando no tempo, para desespero de seu adversário, Cachorro Louco Bill (Mad Dog Madison), que, incapaz de deter a força Falconiana e hipnotizado pela testa luminosa à mostra pelo buraco do boné com a aba na nuca, passa a pular - sem tirar da mesa o cotovelo do braço que está lutando – e a dizer coisas como: “Raios, que poder inimaginável!”, “Como ele consegue? Como ele consegue?” e “Aaaaarrrggghhhhh!!!”.

Em certo momento dessa cena, aqueles possuidores de talento nato e súpervisão podem notar que o ator Randy Raney, intérprete de Cachorro Louco Bill (Mad Dog Madison) não faz força para deter o braço do adversário, apenas grita e esperneia enquanto Falcão vagarosamente ruma em direção à vitória e à conquista inicial do orgulho do filho.

13.9.06

História Cabeluda - 1

Em minha família somos todos bem fornidos de cabelo. Há gerações. Se cada linhagem possui uma característica própria, meu dna está imerso de pêlos capilares. Não somos peludos no peito, ou nos braços ou nas pernas. Nada acima ou abaixo do normal. Nossa força está nos cabelos, todos negros como a primeira noite. Vultosos, volumosos, polpudos. Cabelos protegidos por gerações de casamentos arranjados. Os homens e as mulheres da família sempre foram admirados e desejados por sua aura monárquica, sua forte, atraente e irresistível imagem soberana e ditatorial. A escolha da (o) companheira (o) de procriação sempre é nossa. Como em qualquer outra família, também temos nossas ovelhas-negras desajustadas. Fizessem o que fizessem, porém, nunca tiveram descendentes frutos da paixão ou do tesão por alguém de cabelo impuro. Por mais desviados e indecentes, putrefatos e sem-dentes, nunca deixaram de guardar com zelo aquilo que jamais lhes seria tirado: a excelência capilar.

Nossa família é muito unida. Somos como uma máfia, uma maçonaria. Uma rede de bancos. Enfim. Mantemos contato e sabemos todos de todos. Galgamos postos e usamos do corporativismo para que ninguém da família jamais ficasse em condição de “não honrar os cabelos” - como dizem os mais velhos – e os mais novos quando envelhecem.

As decisões sobre onde investir e em qual sentido expandir são tomadas por um grupo de anciãos, os mais antigos e sábios – e sábios antigos – de todos os continentes, que discorrem sobre cabelos e bebem conhaque no Encontro Ancião, em Atlântida, a ilha artificial construída para abrigar a todos da família quando d’A Grande Desgraça.

Nossos tentáculos se expandiram mundialmente e nas mais diferentes direções. Temos, por exemplo, indústrias cinematográficas sob nosso controle acionário. Fazemos filmes de ação com o VanDamme, e em troca ele faz um filme infantil para nós. E vocês não imaginam como esse cara é engraçado imitando um elevador. Esses filmes, escritos e dirigidos por familiares, são comédias que passamos para nossas crianças, com mensagens ressaltando o valor e o cuidado que se deve ter com o cabelo.

Inclusive, todos os produtos que nossas crianças consomem são produzidos pelos núcleos familiares dos mais diferentes lugares. Até mesmo a alimentação, baseada em vitaminas E e B6, vem de frutas colhidas em nossas plantações em países caribenhos.

Tudo para manter a linhagem pura.

Porém, existe um porém, e existe também uma lenda.

A lenda do destelhado.

E é o efeito dessa lenda, em minha vida, que você vai poder acompanhar.
Se quiser.
Aqui.
A qualquer momento.
Com exceção de agora.

12.9.06

Crônicas da Falta Falida - 1

Começou o inverno. Digo isso todo dia que assume o posto de dia mais frio do inverno. Deve fazer já mais de mês que o outono se foi, mas mesmo assim, hoje, eu disse, acho, e pensei que havia, sem dúvida alguma, começado o inverno. Ou ao menos o intenso do inverno. Com frio, cinza e neve. E vento.

Aqui dá pra sentir mais ainda, e ficar imaginando o que essa gente toda dentro de carros que passam zunindo e jogam lufadas de ar frio que não precisariam existir pensa sobre alguém caminhando sozinho, agora que começou o inverno, numa ruazinha deserta e sem outra iluminação que não a de corredios faróis, em frente a um zoológico que só tem papagaio e macaco, não ajuda em nada. Mas também não atrapalha. Incomoda um pouco, como uma picada de mosquito no tornozelo, que só é um saco porque pra coçar é preciso se abaixar.

Bem poderia caminhar pela rua principal dessa merda de universidade, em meio a todas as caras feias, gordas e chupadas e borradas e assustadas e envenenadas pela convivência com essa fumaça preta e podre que jorra dos canos de descargas dos ônibus que chegam tão perto da calçada que levar um safanão de espelho retrovisor na nuca é algo pouco difícil de acontecer. E a possibilidade de, nesse momento, haver um amontoado de meninas tremendo de frio dentro dos bolsos de plástico de suas jaquetas, olhando e talvez até mesmo, quem sabe?, exercitando a milenar arte de pensar e conceber um futuro fictício cheio de prazer com um completo desconhecido seria até mais doloroso que a pancada física, na nuca, em si. Essa dor física não vai muito longe. Só o suficiente pra avisar que “a estrutura está danificada”, e quando isso acontece é só comprar analgésicos. Ou engessar a cabeça, caso o motorista do ônibus seja o "Piloto". Quando a dor é de humilhação, qualquer simples lembrança do espetáculo já é o suficiente para acordar a angústia e retornar ela à sua atividade principal de sugar todo o conteúdo do estômago e criar um imenso e poderoso vácuo incomodativo e debilitador. Isso, é claro, para quem entra nessas ondas de se julgar sempre humilhado. Os Bradocks “malditos vietcongues estupraram e mataram minha escrava sexual vietnamita e as duas filhas fruto de nossa relação que estavam quase na hora de serem trocadas por um dote de duas cabeças de cabras”, que julgam que qualquer acontecimento que contrarie sua vontade é um atentado à sua honra e imagem de campeão da humanidade. Essas pessoas são perigosas. E é até bom quando levam uma tapão de espelho retrovisor na nuca – especialmente quando o motorista é o "Piloto".

Eu não me preocupo. Não ando nesse lugar. Não que o medo disso ou uma timidez ou um constrangimento me impeça de andar pela rua - que é chamada de avenida - iluminada e densamente populada. A bem da verdade o único verdadeiro incômodo significantemente incomodativo é a fumaça dos ônibus que me obriga a trancar a respiração por dez, vinte, trinta segundos. Uma tortura semelhante - ao menos no princípio - a ter a cabeça mergulhada num balde com água ou numa banheira de sangue.

Prefiro os carros aqui passando, nesse deserto asfaltado, ornamentado por gritos de macacos decidindo, como o fazem toda a noite, se me convidam ou não para brincar.

Crônicas da Falta Falida - 2

Quando venho para a faculdade de tarde passo sempre por essa rua deserta em frente ao zoológico e fico um tempo vendo os macacos. Do lado de cá da cerca, escorado numa árvore ao lado de um latão de lixo. Às vezes compro um pacote de bolachas recheadas e fico ali comendo e olhando os macacos. Se for contar quanto tempo já fiquei aqui com os macacos, talvez o tempo seja maior que o tempo de convivência que tive com meu avô. E mesmo assim ainda não consigo saber naquela jaula quem é macaco e quem é macaca, quem é pai e quem é filho. Para poder brincar melhor com eles inventei uma família hipotética. São em nove no total, e, na minha família hipotética, duas macacas adultas, mães de dois macaquinhos e de uma macaquinha. Os outros quatro são dois macacos maridos das macacas e dois sem ligação alguma com nenhum deles, mas que foram colocados ali arbitrariamente e agora já são chamados de primos. A iniciação sexual da menorzinha foi com um desses dois, ninguém sabe com qual, pois os dois se gabam do fato e a macaquinha era muito nova para saber reconhecer a diferença entre dois macacos. Longe de ser importante, essa discussão e gabação aconteceu apenas uma vez e por uns dois minutos. Ninguém ali passa mal quando o assunto é sexual: todos se amam mutuamente. Com essa moral liberal, peludos e tomando banho lá de vez em quando, não podia chamá-los por outro nome que não o de Família Ripes. Família Ripes, no plural mesmo.

Gostam de brincar comigo. Algumas vezes todos brincam, outras vezes apenas alguns (ou um). Nossa brincadeira consiste em eu ficar escorado na árvore olhando para eles parados ou pulando. Nos primeiros dias, quando os descobri, brincávamos de ver quem piscava primeiro. Acho que eles queriam brincar de estátua também, porque quase não se mexiam, mas eu não estava nem aí, só brincava de não piscar. Queria comer minhas bolachas, e acho que mexer a boca já é perder no “estátua”. Brincava de não piscar. E ganhava. As vezes até fazia um ou outro fechar os olhos e coçar e coçar.

Dia desses quando cheguei ali perto estavam todos muito agitados, pulando e gritando. Pulavam de um lado para o outro, num ziguezague difícil de acompanhar. Flap! Flap! Flup!, Flap, Pá! Voando lá do fundo veio um dos maridinhos com tudo e se jogou contra o cadeado que prende a jaula com uma pedra na mão. Sei lá quem eles subornaram no zoológico para conseguir aquela pedra, o fato é que nem toda aquela seqüência de embalos nem o que parecia ser uma dancinha de ritual de macaco que os outros faziam e nem a pedra de bom tamanho foram o suficiente para quebrar o cadeado, que deve ter sofrido, no máximo, um arranhão. Nesse momento de profunda revolta e decepção para os macacos tenho certeza – quase – que ouvi um dos macacos gritar naquela voz enguiçada “Ferro temperado do caralho!”. Mas talvez tenha sido apenas um grito de macaco misturado com o barulho das minhas mordidas nas bolachas.

Fiquei triste pelos macacos. Pareciam gente boa o suficiente para não merecer viver numa jaula pequena e apertada daquelas. Além disso, a jaula era toda - TODA – enferrujada, exatamente da cor dos pêlos dos macacos, que eu já começava a desconfiar que eram daquela cor exatamente pelo contato com a ferrugem. Será que cheiram a ferrugem também? Depois desse dia, e de pensar na ferrugem das grades e na cor dos pêlos dos macacos, comecei a imaginar eles todos louros, com os pêlos brancos e vultosos, monárquicos, nos mais velhos. Colocar uma coroa num macaco assim e chamá-lo de Rei Macaco é fácil, fácil. Difícil é acreditar que um dia tomarão um banho decente que os deixará exibir toda sua realeza.

Crônicas da Falta Falida - 3

Estava já quase entrando na aula, atrasado, só na rotina, quando uma fisgada na bexiga lembrou que ir ao banheiro era necessidade das mais urgentes. Normalmente vou antes de fazer qualquer coisa que me impeça de descarregar os fluidos por um tempo entre uma hora, uma hora e meia até umas 15 horas. 15 horas deve ser o limite que alguém agüenta sem mijar. Dois terços de dia. Eu, se durmo meia-noite, as onze, no máximo, to acordando pedindo uma mijada. Na faculdade, mijo antes da aula, no intervalo e antes de ir embora. Algumas vezes até duas vezes depois da aula, dependendo da hora que a aula acaba e da temperatura. Quando ta frio mijo mais. Tenho certeza, e a hipótese de o organismo queimar gordura para esquentar o corpo e mandar essa gordura derretida pra urina me é bastante crível. E plausível. E adequada e bem-vinda.

Dos 4 mijadores do banheiro (não pessoas, mas sim os quatro penicos de acrílico presos na parede), escolho sempre o bem da direita. Até criei uma frase “nunca confie em quem mija nos do meio”, mas nunca pude comprovar nada: não me relaciono com quem mija nos do meio. Quando esse bem da direita está ocupado uso o bem da esquerda, provando que não me sinto nem um pouco intimidado com a presença de outra pessoa ali e que não tenho problemas em fazer isso com outra pessoa por perto, e, nesses dias, quando fico ao lado de alguém, mesmo que distante, uso toda minha força de vontade para dar a mijada mais ruidosa e potente que o sujeito já possa alguma vez ter ouvido (ou sentido, caso os jatos rebatam no acrílico do mijador e acertem o sujeito). Penso nisso como uma espécie de combate subentendido. Quem perde faz de conta que nada aconteceu e quem ganha dá uma chacoalhada satisfeita e guarda a pistola com esmero.

Por sorte, deus me fez de um jeito que posso mijar a qualquer momento. Agora mesmo poderia me mijar nas calças se por algum motivo fazer uma barbaridade dessas se tornasse imprescindível. Quando menor, como qualquer outro garoto de bom porte físico, queria ser jogador de futebol. Minhas duas maiores preocupações eram tirar uma gota de sangue do dedo para fazer exames e ser sorteado para o anti-doping e ficar horas sem conseguir dar o material urinário para a análise. Um amigo que também queria ser jogador dizia que os médicos pagavam cerveja para que desse vontade, mas, como era criança, imaginava que teria de me contentar em tomar muito leite com nescau. Mais um motivo pra ser jogador.

Às vezes, quando dois dos quatro mijadores estão ocupados, entro numa das cabines. Fico um pouco constrangido, mas não posso ferir meus princípios. Se são duas pessoas nos 2 de 4 mijadores, ou estão nas duas pontas (e eu teria de mijar num dos do meio) ou um está num dos do meio, ou ao lado do que ta na ponta ou ao meu lado, sendo ambas as hipóteses assustadoras. Para compensar essa ida à cabine, deixo a porta um pouco aberta – “alguém mais ouve a cascata?laralááá”. Quando faço isso, gosto de esperar que os outros saiam do banheiro para que eu possa tranqüilamente lavar as mãos, lavar o rosto, assoar o nariz e secar tudo isso com os rolos de papel higiênico que a faculdade coloca à disposição dos alunos para fazer esses e outros serviços. Sempre que vou ao banheiro faço isso e me sinto como um assassino ao término de cada atentado: renovado espiritualmente.

Dia desses, hoje mesmo, estava secando o rosto quando alguém deu três batidas na porta. Como a porta é a porta do banheiro, daquelas parecidas com as de Saloon, só que abrindo só em um dos lados e não no meio, fiquei imaginando que espécie de idiota bate numa porta de banheiro. A hipótese mais coerente, mas nem por isso menos absurda, é a de que era um carteiro que havia levado um pequeno de um trote postal.

Pensando nisso comecei a caminhar em direção à porta, esperando quem sabe encontrar alguém. Ao invés de empurrar a porta – com um chute, como de costume –, decidi puxar. Quando puxei, vi passando um cara, de cabelo crespo caído sobre a testa, caminhando e com a mão suspensa no ar fazendo com a mão o gesto que teria por onomatopéia “toc-toc-toc” caso eu não tivesse tirado a porta do lugar e deixado no lugar da madeira somente o ar que agora vibrava com as desmunhecadas inúteis do mané.

Quando viu que não acertou em nada, que alguém havia puxado a porta e flagrado ele numa atitude boba e supostamente provocativa, recolheu o braço e acelerou um pouco o passo caminhando de um jeito robótico congelado sem nem olhar para o lado. Eu ri, baixo, como o pateta. Ele se virou, ainda constrangido, e apontou o dedo pra mim como um revólver “heeeehee”. Ri como o pateta de novo e olhei pra ele de um jeito que ele entendesse a mensagem te peguei, magrão.

Consegui ver ele pensando que não deveria ter batido ali na porta duas vezes. Se era pra ser algo parecido com rebeldia, uma única série de batidas, na ida, já teria sido o suficiente. Bater na volta ia aumentar em muito pouco o prazer dele em tirar uma onda, enquanto duplicava as chances de o destino aprontar uma para o jovem gozador.

5.9.06

Dial

- Odeio isso que tu faz de chegar nos lugares e sempre chamar a atenção!
- Como assim? Eu não faço isso.
- Faz sim.
- Quando?
- Sempre.
- Rá. Quando?
- Ahm... Ontem.
- Quê que tem?
- No restaurante. Começou a girar a mesa e arrastar cadeira.
- Sim, mas a mesa tava toda suja do lado que a gente ia sentar.
- Era só sentar do outro lado.
- E ficar de costas pra tevê?
- Dava pra pedir pros garçons limpar.
- Qual o problema em ter pessoas olhando na tua direção?
- Meu problema é em chegar em um restaurante e dar um 180 numa mesa.
- Mesa de plástico!
- No meio do restaurante.
- Ah, aqui só tem retardado.
- Viu! Tu é bem assim mesmo. Todos são retardados e inferiores, só tu que é o fodão que sempre tem que chamar a atenção.
- Mentira.
- Verdade.
- Tá, cala a boca.